Enquanto forças militares ocupam as ruas do Rio, mulheres agem por meio da cultura e da educação

ONGs como Redes da Maré e Casa das Pretas transformam realidades há anos

POR EDUARDO VANINI para O Globo

 

Ao cruzar, em 1988, a Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio, em meio à Marcha Zumbi, a professora de sociologia Edmeire Exaltação percebeu que ela e seus companheiros estavam tocando em um ponto nevrálgico da sociedade brasileira.

— Havia um forte aparato militar para nos coibir e chegaram a apagar todas as luzes da avenida. Isso mostrou como a nossa união representava uma ameaça. Sabem a força que teremos se todos nos juntarmos — reflete ela, sobre o protesto liderado pelo movimento negro.

Trinta anos se passaram, e Edmeire segue firme com o seu propósito de transformar a sociedade. Ao lado da colega Ruth Pinheiro, ela fundou, no ano passado, a Casa das Pretas, um sobrado no coração da Lapa que passou a servir como ponto de referência para mulheres negras. Assim como ela, uma sólida rede de mulheres está há anos intervindo na sociedade, enfrentando, sem temer, situações de violência e vulnerabilidade. Muito antes de o Rio sofrer uma intervenção federal na segurança, elas fundaram organizações dedicadas à construção de uma cidade melhor, por meio de áreas como a educação, a cultura e a igualdade de oportunidades.

A Casa das Pretas abriga o Centro de Apoio ao Desenvolvimento Osvaldo dos Santos Neves e a ONG Coisa de Mulher. Juntas, essas entidades já desenvolveram, ao longo de aproximadamente 20 anos, ações que vão de assistência psicológica e doação de produtos de higiene pessoal a mulheres negras presas até cursos de capacitação. Com a sede, a proposta é fazer do local um espaço de produção de conhecimento. Isso tem sido realizado por meio de oficinas e palestras cujo mote é resgatar a autoconfiança das mulheres negras e fazer com que tenham clareza sobre seus direitos.

— A primeira coisa que o racismo faz é acabar com a autoestima da pessoa e a sua percepção como ser humano igual a todos. As mulheres sofrem muito com isso, porque o padrão de beleza “oficial” no país ainda é de brancas, magras e louras, o que não é a realidade da grande maioria das brasileiras — afirma Edmeire.

MOVIDA PELA QUESTÃO RACIAL

Um dos principais estímulos por trás do engajamento dela é a convicção de que “não há nada neste país que a gente toque que não tenha como referência a questão racial”:

— Se falarmos da violência, a grande maioria das vítimas é negra, assim como dos protagonistas, que são jovens negros. Afinal, isso também é resultado do racismo e da desigualdade. É o corte racial que dá ou tira oportunidades no Brasil.

Desenvolver trabalhos como o grupo faz, entretanto, não é tarefa simples. A casa ainda não está totalmente finalizada, porque faltam verba e tempo. Edmeire, por exemplo, divide sua dedicação à ONG com o ofício de professora do ensino médio em uma escola de Bangu. Fora isso, não é raro uma atividade agendada na casa receber apenas metade do público esperado. Muitas mulheres não conseguem deixar suas comunidades por causa dos conflitos armados.

— É um trabalho de formiguinha, mas a gente já consegue ver o reflexo das nossas ações nas vidas de muitas jovens — comemora.

A mexicana-nicaraguense Amalia Fischer parte do mesmo princípio. Ela chegou ao Rio na década de 90 para cursar doutorado em Comunicação na UFRJ. Começou a se envolver com o movimento feminista local e sugeriu às colegas que criassem um fundo de investimento em mulheres. Como resposta, ouviu o seguinte questionamento: “por que não cria você?”

— Como não posso ser desafiada, fui lá e fiz — orgulha-se ela, que acabou se estabelecendo na cidade.

Criado em 2000, o Fundo Elas tem sede em Botafogo e faz a ponte entre agentes públicos ou privados e empreendedoras e ativistas. Além de viabilizar a doação financeira para que as ideias saiam do papel, a entidade capacita e monitora o andamento das organizações para que o aproveitamento seja o melhor possível. Desde que foi criada, 390 negócios e organizações foram levantados em todo o Brasil, mais de 90 no Rio.

— As mulheres têm uma grande capacidade de se colocar no lugar do outro. Com essa empatia, elas se preocupam muito mais com a comunidade do que os homens — afirma Amalia, sobre a lógica do fundo.

Assim como Edmeire, ela sabe o quanto é complexo fazer girar essa engrenagem. Logo que as unidades de polícia pacificadora começaram a ser implantadas no Rio, o fundo foi convidado pela Chevron para desenvolver um programa-piloto que visava ao financiamento de empreendimentos de moradoras de quatro comunidades. Da parceria surgiram um restaurante, no Jardim Batan, uma fábrica de sabonetes à base de óleo de cozinha, na Cidade de Deus, uma casa de festas, no Morro do Borel, e um bar, no Morro da Providência. Hoje, todos estão fechados por causa da violência nas comunidades.

Para Amalia Fischer, a história dessas mulheres ilustra como situações de guerra impedem que elas avancem em suas vidas e quão profundas devem ser as estratégias de mudança da realidade instaurada nesses locais. Nada disso, entretanto, serve para intimidá-la. Amalia sabe como fazer a diferença.

— Sem aliança entre os setores privado, público e associações da sociedade civil, além da própria comunidade, que precisa ser ouvida, não se pode fazer nada. Qualquer projeto que venha de cima para baixo não vai funcionar — pondera.

Logo que chegou ao Centro de Artes da Maré para esta entrevista, Eliana Souza Silva recebeu um abraço apertado da coreógrafa Lia Rodrigues. Era um dia agitado no espaço de 1,2 mil m². Os bailarinos da Escola Livre de Dança, liderada por Lia, ensaiavam a coreografia que em poucos meses apresentarão na França. Algo natural para a rotina da ONG Redes da Maré, mais do que acostumada a romper os limites impostos à comunidade.

O centro de artes é uma das vertentes da organização, fundada por Eliana há mais de dez anos e que também atua em eixos como educação, comunicação e segurança. O embrião do projeto é um cursinho pré-universitário criado em 1997, a partir de uma inquietação dela e de outros moradores, ao constatarem que apenas 0,5% da população local chegava à universidade.

— Com esse indicador, fomos entender o que significava, do ponto de vista da desigualdade, o acesso à universidade. Percebemos a importância de se produzir conhecimento sobre a nossa realidade para propor mudanças que partam de dentro da Maré. Normalmente, os moradores são objetos de pesquisa e não proponentes — diz ela.

REIVINDICAÇÕES RENDERAM FRUTOS

Dessa trajetória já saíram levantamentos como o mapeamento urbano do complexo de favelas, que fez com que as casas fossem numeradas e as ruas recebessem nomes, e uma pesquisa sobre a quantidade de crianças na comunidade. Com esse último estudo em mãos, os moradores iniciaram uma série de reivindicações que levou à construção de 19 unidades escolares dentro da Maré, além das já existentes.

— Nossa proposta é desconstruir a ideia de que nada pode ser feito aqui em função da violência. A gente produz ações exemplares e lutamos para que sejam incorporadas à política pública — resume Eliana.

No que diz respeito à segurança, a entidade começou a produzir, há cerca de dois anos, boletins de acompanhamento dos conflitos armados. Um dos objetivos é conscientizar os moradores de como eles são excluídos do direito à segurança pública e devem reivindicar isso. Para Eliana, a polícia entrar na comunidade sob o argumento de que vai combater o tráfico de drogas e a presença de armas encobre a origem do problema:

— É só a ponta onde a coisa acontece. Tem uma coisa que ninguém mexe que é de onde vêm as drogas e as armas.

Ilona Szabó não tem tempo a perder. Para fazer as fotos dessa reportagem, agendou um horário bem específico: tinha disponível das 16h45 às 17h20, entre um compromisso e outro. Recebeu a equipe no endereço marcado, posou pacientemente para a fotógrafa e seguiu correndo para terminar de cumprir a agenda do dia.

Rotina de quem assumiu compromissos grandiosos. O Instituto Igarapé, do qual ela é cofundafora, tem hoje o status de ser uma das maiores referências no país em pesquisas e desenvolvimento de projetos ligados à violência urbana. Estar baseado no Rio não é coincidência.

— Os cofundadores do instituto, que são mulheres em maioria absoluta, vêm de diferentes cidades e até de outros países. Todos concordamos que o Rio é um laboratório social com desafios que precisam ser enfrentados com a formação de parcerias de diferentes setores. Nosso trabalho na cidade é fundamental para o aprendizado da organização e fortalece a nossa capacidade de atuar em nível nacional e internacional — resume ela.

ORIGENS DA VIOLÊNCIA

Se a violência é fruto da desigualdade, baixa escolaridade e desemprego, no caso do Rio, a situação se intensifica com o acesso desregulado a álcool, armas e drogas ilícitas, como enfatiza Ilona:

— Por esse motivo, em paralelo às melhorias em nosso policiamento, precisamos trabalhar com distintas instituições para resolver as causas originárias da violência. Se focarmos somente na repressão, ficaremos enxugando gelo eternamente.

Nesse sentido, o instituto coloca a mão na massa e trabalha em parceria com as instituições do sistema de segurança pública e de justiça criminal do estado, além de empresas. Em uma ação recente, foram feitas a doação e a ajuda na implementação do sistema de análise criminal da Secretaria de Segurança Pública, que permite o acompanhamento em tempo real das manchas criminais.

O uso da tecnologia, aliás, é a aposta de Gabriela Agustini para endossar a lista de ações transformadoras na cidade. Ela fundou a Olabi, em 2014, a fim de democratizar a produção no setor. Desde então, mais de 20 mil pessoas já passaram pelos cursos oferecidos pela organização, que passeiam por temas como robótica, programação e impressão 3D.

— Oferecer formação e suporte a iniciativas é a forma que encontramos para lidar com o problema das desigualdades. Garantindo acesso à discussões e ferramentas de ponta, permitimos que as pessoas desenvolvam os seus potenciais e sejam protagonistas — diz ela, destacando as convicções por trás de seu trabalho. — Só é possível ter uma cidade melhor se respeitarmos os direitos de todos os moradores de forma igual. Sem isso, o trabalho de organizações sociais como a nossa fica prejudicada.

Essas intervenções são mesmo uma tropa de elite.

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