Terror sem medida: por que o Rio não sabe o número de balas perdidas que tem

 

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Em apenas sete dias, entre junho e julho, Marlene Maria e sua filha Ana Cristina, a menina Vanessa, de 10 anos, e o bebê Arthur, ainda na barriga da mãe, foram atingidos, no Rio, por tiros de arma de fogo dos quais nunca foram o alvo.

Os quatro foram mortos por engano, vítimas da profusão de disparos com os quais convive o carioca, na disputa cotidiana entre traficantes e policiais. Mas o clichê de que as vítimas “vão virar estatística” da guerra particular do Rio nem sequer se aplica nesses casos. Isso porque a cidade não sabe contar seu número de vítimas de balas perdidas. Não existe estatística oficial para mortes como as de Marlene, Ana, Vanessa e Arthur.

Autoridades de segurança pública do Rio tentaram fazer essa contagem em pelo menos duas ocasiões, entre 2007 e 2012 e em 2015. Falhou em ambas. A situação atual é tão precária que nem mesmo o chefe da Polícia Civil do Rio, Carlos Leba, é familiarizado com o sistema interno de notificação de balas perdidas.

Especialistas em segurança pública dizem que uma estatística oficial é essencial para poder acompanhar a evolução da situação, entender onde essas mortes ocorrem com mais frequência e planejar políticas públicas que detenham o aumento nesse tipo de violência.

“É simplesmente inaceitável que o ISP (Instituto de Segurança Pública) e a Secretaria de Segurança Pública ainda não tenham chegado a uma fórmula para acompanhar o número de casos, e precisamos ficar nos valendo de levantamentos feitos por jornalistas para tentar rastrear a situação”, afirma Silvia Ramos, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Cândido Mendes (Cesec).

 

‘Pior pesadelo da violência urbana’

Sem dados oficiais, a imprensa e as organizações sociais fazem levantamentos periódicos para tentar conhecer a dimensão do problema. Tais contagens são feitas majoritariamente com base em casos que viram notícia, sujeitas a subnotificação e com grandes disparidades entre si.

De acordo com um levantamento feito pela BandNews, de janeiro até o dia 6 de julho deste ano, o Rio teve 113 casos de bala perdida, com 33 mortos. Já o jornal Extra chegou a um número muito maior. De acordo com o diário, foram 632 pessoas atingidas por balas perdidas entre janeiro e julho, e 67 vítimas fatais. O número equivaleria a uma vítima a cada sete horas.

O Extra obteve acesso aos dados sobre bala perdida da Polícia Civil, que, entretanto, não são disponibilizados à imprensa por vias oficiais – como constatou a BBC Brasil, informada pela assessoria de imprensa de que “a Polícia Civil não possui esses dados para divulgação”.

Silvia Ramos estima que mais de 90% das vítimas de balas perdidas sejam moradores de favelas ou bairros pobres. Ela compara o temor despertado pelas balas perdidas ao medo gerado pela imprevisibilidade de ataques terroristas em países que sofrem com esse tipo de problema.

“Casos como o da grávida atingida traumatizam a cidade. A chamada “bala perdida” se tornou um dos fenômenos de violência que mais assusta a população. Essa ideia de que você está tocando a sua vida e de repente vem uma bala, não se sabe de onde, e pode te matar – esse é o pior pesadelo que a violência urbana pode gerar.”

Brasil: recorde de vítimas na região

Entre os países da América Latina e Caribe, o Brasil tem o maior número de mortes causadas por bala perdida, de acordo com um estudo do Centro Regional das Nações Unidos pela Paz, Desarmamento e Desenvolvimento na América Latina e Caribe (Unlirec, na sigla em inglês).

A pesquisa também é baseada em notícias na imprensa e calcula que o Brasil teve 197 vítimas de bala perdida entre 2014 e 2015, com 98 mortes e 115 pessoas feridas. Depois vieram México, com 116 casos; e Colômbia, com 101 casos.

Robert Muggah, especialista em segurança e desenvolvimento e coordenador de pesquisas do Instituto Igarapé, diz que registrar balas perdidas é um grande desafio e que a informação existente é cheia de lacunas.

“É difícil confiar nesses dados porque eles são derivados de notícias na imprensa e não em registros de saúde pública”, diz ele.

De acordo com o sociólogo Ignacio Cano, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência, não há um modelo de contagem em outros países no qual o Brasil possa se espelhar.

“Isso porque outros lugares não têm um número significativo de balas perdidas a ponto de causar alarme social e a necessidade de registros. Nossa situação é muito atípica. Outros países não têm essa necessidade, nem têm o problema que nós temos”, aponta Cano.

Imbróglio conceitual e dados subaproveitados

Embora a definição de “bala perdida” já esteja no senso comum, não configura um “tipo penal”, ou seja, não é uma categoria criminal adotada no Código Penal Brasileiro. Uma ocorrência será registrada pelo crime em que resulta, seja homicídio ou lesão corporal dolosa (quando a vítima não é fatal).

Em 2015, no esforço de criar um mecanismo confiável para contabilizar o número de casos, Ignacio Cano e Silvia Ramos participaram de conversas com o então chefe da Polícia Civil, Fernando Veloso, e a diretora-presidente do Instituto de Segurança Pública (ISP), Joana Monteiro. O objetivo era formular um conceito claro para casos de “bala perdida” e viabilizar um levantamento oficial.

A discussão conceitual não foi superada – mas as conversas levaram Fernando Veloso a implementar mudanças no sistema de registros da Polícia Civil.

O sistema eletrônico no qual as ocorrências são registradas em todas as delegacias do Estado foi modificado para incluir uma tabulação indicando “autoria ignorada – bala perdida”, que poderia ser marcada ao detalhar casos de homicídio ou lesão corporal quando houvesse indícios de bala perdida.

O objetivo era gerar um fluxo constante de informações para que o ISP viesse a produzir uma estatística oficial.

“Tomamos essa iniciativa por causa da sucessão de casos na época. Era um caso atrás do outro, e começou a haver essa demanda”, lembra Veloso, que deixou o cargo na Polícia Civil em outubro do ano passado.

“Não é fácil estabelecer um critério oficial do que é bala perdida ou não, mas buscamos esse caminho para tentar ter uma visão, minimamente, do quanto isso representa no problema de insegurança do Rio.”

Entretanto, embora o primeiro passo tenha sido dado, faltaram recursos para os passos seguintes, diz Ignacio Cano – investir em treinamento dos policiais para usar a nova ferramenta de modo a gerar dados confiáveis e consistentes.

“Depois de negociar a criação dessa ‘caixinha’ no sistema, o ISP viu que o que estava sendo registrado não tinha pé nem cabeça. Vários casos não procediam, e faltavam outros que tinham ficado conhecidos”, diz Cano.

Aparentemente, os policiais não sabiam – ou não queriam – preencher corretamente os dados.

Joana Monteiro, diretora-presidente do ISP, diz que quando o instituto foi ler os dados gerados pelo novo sistema, constatou incongruências e não os considerou confiáveis. Ela diz que o ISP “ainda busca outras soluções”.

“Não divulgamos porque não encontramos uma forma de realizar uma contabilidade satisfatória para que possamos divulgar um número próximo que consideremos próximo à realidade”, afirma.

Veloso diz que a iniciativa esbarrou no cenário de falta de recursos que só tem se agravado na segurança pública. “Pode ser que o número não retrate a realidade dos fatos, pela falta de um conceito claro de bala perdida, mas também porque você tem que investir na qualificação de policiais de forma intensiva para que os resultados sejam efetivos. E logo depois da implementação, a carência de recursos começou a restringir a própria sobrevivência do sistema da polícia.”

Chefe da Polícia Civil ignora sistema interno de contagem

Monteiro afirma que o ISP costuma ser cobrado por um dado oficial por já ter feito essa divulgação no passado. Entre 2007 e o primeiro semestre 2012, o ISP divulgou periodicamente os chamados “Relatórios Temáticos de Bala Perdida”.

De acordo com os relatórios, o número de pessoas atingidas por balas perdidas apresentou queda constante entre 2007 e 2011. Em 2011, houve 88 vítimas, com sete mortes; em 2007, foram 279 casos, com 21 vítimas fatais.

Mas os dados foram submetidos a sucessivos questionamentos e a contagem foi abandonada. De acordo com Monteiro, a metodologia era “muito simples”, baseando-se meramente na busca por casos onde policiais tivessem usado a expressão “bala perdida” na descrição da dinâmica da ocorrência nos registros. “Várias pessoas concordavam que não era satisfatório.”

Nesse sentido, a ferramenta acrescentada ao sistema da Polícia Civil seria mais segura, porque a denominação “bala perdida” poderia ser marcada pelos policiais ao registrarem casos de homicídio ou lesão corporal. Perguntado sobre o uso da ferramenta, no entanto, o atual chefe da Polícia Civil, Carlos Leba, demonstrou desconhecer o mecanismo.

Leba disse se lembrar do debate ocorrido à época de seu antecessor, Fernando Veloso, e que era preciso averiguar se a tabulação continuava na plataforma, fato confirmado posteriormente pela BBC Brasil com o departamento de tecnologia da informação.

 

O chefe da Polícia Civil afirmou que o sistema tem “subtítulos e detalhamentos às centenas”. “Criar um subtítulo é fácil, o problema é fidedignidade do dado”, afirmou, ressaltando as dificuldades em se identificar de imediato se um caso resultou de “bala perdida” ou não – um fato que precisará ser investigado.

Ele diz concordar que dados sobre esse tipo de caso são de interesse público. “É do DNA da Polícia Civil se interessar por isso. A Polícia Civil tem obrigação de tentar saber de onde veio (o tiro) para relacionar causa e efeito de um evento. Tentar saber se uma bala foi motivada por uma ação dolosa ou foi acidental, ‘perdida’, nós já fazemos isso diuturnamente”, diz Leba. Para ele, a missão da Polícia Civil é de investigar, enquanto o do ISP é de divulgar.

Joana Monteiro diz que “ainda não desistiu”, mas considera “extremamente difícil” ter uma estatística de bala perdida que possa ser divulgada com frequência e precisão.

“A bala perdida é um fenômeno que deixa as pessoas muito angustiadas. Entendo o clamor social. Mas a questão central do Rio é se debruçar sobre a origem do problema da letalidade violenta como um todo. A bala perdida é parte de um quadro de violência estrutural, não é sua única consequência”, afirma ela.

 

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