Cerca de 60% das apreensões de maconha no Rio seriam consideradas posse legal em Portugal
15 de Fevereiro, 2017
Fabio de Oliveira foi surpreendido por dois policiais militares uma manhã do mês de dezembro quando ele estava fumando um cigarro de maconha na porta de casa, em um morro de Santa Teresa, no centro do Rio. Alertados pelo cheiro, a dupla, que fazia operação na comunidade, chegou até Fabio, o revistou e foi autorizada a entrar na casa. Ali encontraram cannabis embrulhada em filme plástico. Eram apenas seis gramas, mas a ocorrência, considerada como porte de drogas para consumo próprio e não tráfico, ocupou os policiais por mais de três horas, envolveu um delegado da Polícia Civil, o laboratório onde foi confirmada a natureza da substância e mais para frente mobilizará um juiz que deverá julgar a causa.
O roteiro, caro e burocrático, é comum demais no Rio de Janeiro e um relatório inédito do Instituto de Segurança Pública (ISP), que está sob a Secretaria do mesmo nome, mostra que é assim, em quantidades mínimas – algo em torno de 10 a 15 gramas – que é apreendida a maior parte da droga no Estado. O relatório demonstra que se o Brasil seguisse os exemplos de Portugal ou Espanha, nos quais 25 e 100 gramas de maconha, respectivamente, são utilizados como parâmetros para definir o que é usufruto pessoal, haveria algo como 60% e 80% de casos registrados no Rio como posse. O modelo espanhol e português são referência para pesquisadores da área. O exemplo português ficou conhecido no Brasil através do documentário Quebrando o Tabu, de 2011, protagonizado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Apesar das pequenas quantidades apreendidas, os registros de tráfico são os mais comuns no Rio, somando entre 44% e 52% do total de ocorrências entre 2008 e 2015. Em 2015, por exemplo, houve mais de 13.000 ocorrências por tráfico, o que representa mais de mil casos por mês ou 38 por dia. No mesmo ano, houve também mais 12.000 ocorrências por posse ou uso de drogas.
Pela lei de drogas brasileira de 2006 não há uma quantidade mínima que determina o limite entre posse e tráfico. É primeiro um delegado no processo de denúncia e depois o juiz quem determinará o propósito da droga baseado na quantidade, no contexto da ocorrência e nas circunstâncias pessoais e sociais do portador. As penas variam de penas alternativas à prisão efetivamente, dependendo do critério do juiz. Em qualquer caso, a lei obriga a polícia a atuar. Assim, a apreensão de drogas ocupa boa parte do tempo dos policiais, conforme relataram à reportagem dois PMs que atuam em favelas e no programa Centro Presente que, financiado pelo setor privado, emprega policiais no centro da cidade para reforçar a segurança. “Depois dos furtos, perdemos muito tempo com isso. Qualquer ocorrência do tipo nos leva seis horas entre prendermos, levarmos à delegacia, irmos ao laboratório e voltarmos. A maioria das vezes ainda não dá em nada”, lamentam sob condição de anonimato. “A gente é obrigado a atuar, mas às vezes fazemos vista grossa. Não dá”.
Os dados do ISP abrem mais uma porta ao debate sobre a descriminalização das drogas, defendido pelo próprio secretário de Segurança Pública do Rio, Roberto Sá, e reforçado nos últimos dias pelo ministro do STF, Luís Roberto Barroso. “O primeiro e grande objetivo de uma política de drogas no Brasil deve ser acabar com o poder opressivo do tráfico […] o segundo, é reduzir o índice de encarceramento inútil de jovens primários que são presos como traficantes. São pessoas não perigosas que passam alguns meses ou alguns anos na prisão e saem de lá perigosas”, disse Barroso em entrevista recente ao O Globo.
Especialistas avaliaram o relatório a pedido do EL PAÍS e coincidem na avaliação de que a atual da política anti-drogas no Brasil é um fracasso, questionando os efeitos da lei de drogas no país. “O uso extensivo de efetivo policial nas ruas com objetivo de fazer revistas para encontrar drogas é enxugar gelo, uma péssima alocação de recursos, inadmissível em momento de austeridade fiscal”, avalia Ilona Szabó, diretora-executiva do Instituto Igarapé, think tank que influencia políticas públicas em segurança, justiça e desenvolvimento. “As operações que geram resultados significativos são aquelas que focam em ações de inteligência para o desmantelamento de redes de crime organizado, um problema que assola todo nosso estado, e não na apreensão de drogas, que é consequência.”
Szabó afirma ainda que “não há gestor público no mundo que consiga endossar uma estratégia que produza, em 99% das ações, apenas 15% dos resultados”. O cenário se agrava, completa ela, quando lembramos que, a cada registro de ocorrência, todo o sistema de justiça criminal é mobilizado, não apenas os agentes policiais, mesmo em casos de posse para consumo pessoal. “Os dados do ISP vem em boa hora e comprovam o que todos já suspeitavam: nossa política de drogas falhou, mesmo em seus próprios termos”, conclui.
Para Marcelo Campos, doutor em Sociologia e cuja tese na USP versou sobre os efeitos da lei de drogas no sistema de justiça criminal, é preciso “determinar uma quantidade limite para a descriminalização de todas as drogas”. “Adotando limites para uso de maconha, por exemplo, como Portugal (25 gramas), Uruguai (40 gramas) ou Espanha (100 gramas) muitas pessoas não estariam nas prisões”, avalia Campos. “Assim, poderíamos ter avanços sociais, políticos e humanos significativos em termos de política de drogas no Brasil, com investimento em políticas de saúde pública e tratamento baseado na redução de danos. Do contrário, iremos continuar retirando drogas e corpos das ruas”.
O relatório do ISP, um panorama das apreensões de drogas no Rio de Janeiro, revela que houve um grande aumento dos casos de apreensões de drogas nos últimos anos e que entre 2008 e 2015, o número de registros de ocorrência, triplicou, chegando a mais de 28.000 em 2015. Mas também evidenciou a baixa quantidade de entorpecentes envolvida na maior parte dos casos. Em 50% das ocorrências em 2015, por exemplo, apreendeu-se até 10 gramas de maconha, a droga mais comum no Rio.
Para se ter uma ideia, em termos absolutos, entre 2010 e 2016, 400 ocorrências apreenderam aproximadamente 60 toneladas de maconha, enquanto outras 80.000 ocorrências recolheram 16 toneladas. Esses números revelam que poucos casos respondem pela maioria da droga apreendida.
Nessa conta, ainda, o ISP exclui o chamado “caso da ocupação do Alemão”, a operação policial que, com ajuda do Exército, tomou o complexo de favelas e que disparou a quantidade de maconha confiscada em novembro 2010. A exclusão se deve ao que é considerado um caso atípico pois só essa operação apreendeu 35 das 42 toneladas desse ano, fortalecendo a ideia de que são as grandes operações as responsáveis pela apreensão da maior parte da droga no Rio. O relatório afirma que foram necessários 47 meses, ou quase quatro anos, para alcançar o mesmo valor de novembro de 2010.
No caso da cocaína, a segunda droga mais apreendida no Rio, a avaliação no mesmo período é parecida. Em termos absolutos, 280 ocorrências registraram quase quatro toneladas, enquanto outras 55.000 ocorrências somaram quase o mesmo valor de massa de droga apreendida.
O relatório evita qualquer avaliação subjetiva dos dados, mas contempla um alerta: “A redução da oferta de drogas na sociedade parece ser o objetivo dessas ações. Entretanto, o aumento das atividades não necessariamente é indicador qualificado o suficiente para responder se houve ou não diminuição da oferta”.