Que armas queremos?
Diante do massacre em Orlando, o presidente Barack Obama voltou a chamar a atenção para a facilidade de acesso às armas nos Estados Unidos. Para ele, é preciso que os americanos decidam se esse é o tipo de país que querem ter. Frente aos inúmeros massacres que testemunharam, não fazer algo quanto à questão do acesso facilitado às armas já seria uma tomada de decisão.
Este mesmo questionamento também pode ser feito para nós: qual é o tipo de sociedade queremos ser?
Com quase 60 mil mortes violentas por ano, batemos todos os trágicos recordes que inviabilizam o nosso desenvolvimento e a consolidação de nossa democracia. Entre 2003 e 2013, o feminicídio de mulheres negras aumentou 54%. Um jovem negro tem três vezes mais chances de ser assassinado que um jovem branco. Só em 2015, estima-se que a homotransfobia tenha feito mais de 318 vítimas. Nossos dados de homicídio de crianças e jovens até 19 anos nos colocam em segundo lugar no ranking mundial, atrás da Nigéria.
Diante desta realidade, temos duas opções. A primeira nos leva à qualificação das políticas de segurança pública do país. Neste caso, engajaríamos todos os entes federativos, com destaque para os municípios, numa agenda focalizada de prevenção. Abordaríamos o recorte racial e de gênero das vítimas. Aperfeiçoaríamos nosso modelo policial, amplamente orientado pela lógica do confronto, e nossas capacidades investigativas. Debateríamos a reorientação de nossa política de drogas, trazendo a preocupação com a saúde e o bem-estar dos indivíduos para o centro de nossas ações. Trabalharíamos para a redução de nossa população carcerária e do inaceitável número de presos provisórios. Consolidaríamos uma política de regulação responsável de armas e munição, entendendo sua relação direta com a redução da violência letal e outras formas de vitimização.
A segunda opção é assumirmos que nosso compromisso não é com o fortalecimento da segurança como um bem público, e tampouco com a adoção de políticas baseadas em dados e evidências. No caso específico da regulação de armas e munição, ignoraríamos o impacto reconhecido e documentado do Estatuto do Desarmamento na redução da taxa de homicídios por armas de fogo no país. Além de nossa própria experiência, também desconsideraríamos os mais de 130 estudos de dez países que apontam para a direta relação entre regulação responsável de armas e munições e redução de homicídios.
Propostas legislativas que escolhem esta segunda opção proliferam no Congresso Nacional. Além da revogação do próprio Estatuto do Desarmamento, diversos projetos de lei ampliando o porte de arma para diferentes categorias profissionais tramitam tanto na Câmara como no Senado. Diante deste varejo legislativo que desmantela um dos eixos centrais do Estatuto, é preciso deixar claro qual é nosso compromisso como sociedade. Qualificaremos nossas políticas de segurança pública colocando a defesa da vida como a nossa maior prioridade, ou continuaremos a sustentar a irresponsável narrativa de que mais armas em circulação nos trarão mais segurança?
A pergunta feita pelo presidente Obama que ecoou nos Estados Unidos depois do massacre de Orlando também pode ser feita para nós e para nossos legisladores. Todos os dias.
Por Michele dos Ramos
Artigo de opinião publicado em 21 de junho de 2016
O Globo