A expansão das gangues digitais

 

Setembro, 2015

 

Os governos já não detêm o monopólio do uso de big data para monitorar e antecipar ameaças. Agora, organizações criminosas, cartéis e gangues estão entrando no jogo

Paralelamente à aceleração da revolução digital, há sinais por toda parte de governos fazendo uso de novas tecnologias para monitorar e reprimir cidadãos. As revelações do crescente programa de espionagem da Agência Nacional de Segurança (NSA, National Security Agency) são apenas o início. Não se trata somente de governos ocidentais que espionam cidadãos em lugares distantes: do Egito à Síria, autocratas têm usado técnicas de prospecção de dados e análise de redes sociais com efeitos malignos.

inúmeros exemplos de governos que reprimem liberdades na internet. Na Rússia, o Centro de Pesquisa em Legitimidade e Manifestações Políticas, favorável ao Kremlin, monitora as mídias sociais com o intuito de prever protestos populares. Na China, sistemas de vigilância são, com frequência, embutidos em equipamentos de provedores de rede e em plataformas de mídias sociais. Muitas vezes auxiliados por empresas de defesa e segurança cibernética, vários governos aplicam modelos matemáticos avançados para prever como as informações fluem através das redes; com base em seus achados, realizam “arrastões” para apanhar os ativistas envolvidos.

É emblemático o caso da Unidade 8200, um grupo de elite israelense que emprega táticas coercitivas ao espionar os palestinos, inclusive por meio da coleta de dados comprometedores de caráter sexual, financeiro e pessoal. No ano passado, a extensão dos meios de vigilância estatal foi revelada por denúncias dos refuseniks, um grupo de objetores de consciência israelenses. Enquanto isso, juntamente com o Irã, diversos hackers não estatais vêm dirigindo sua atenção a Israel.

Os hacktivistas pró-Palestina que adotam o emblema#OpIsraelatacam, com frequência, os sites e servidores do governo de Israel. Os governos não detêm o monopólio do uso de big data (análise de grandes volumes de dados) para monitorar e antecipar ameaças. Bancos privados de investimento possuem vasta experiência nessa área, assim como um crescente grupo de humanitários digitais, que têm aproveitado dados de satélite e telecomunicações para auxiliar vítimas de desastres. Agora parece que organizações criminosas, cartéis e gangues estão entrando no jogo. Alguns desses grupos são pioneiros por excelência nessa área: eles empregam as mídias sociais não somente para identificar e neutralizar seus concorrentes, mas também para gerenciar suas relações públicas.

A presença online de organizações ligadas ao tráfico de drogas pode soar estranha para os leitores, ou até mesmo contraditória. Afinal, o crime organizado tradicionalmente prospera nas sombras, longe do olhar público. Historicamente, esses grupos criminosos sempre investiram em minimizar seu perfil público, não em amplificá-lo. A internet vem mudando isso. Organizações dos mais diversos tipos, tais como o Estado Islâmico e o cartel Los Zetas, vêm usando o espaço cibernético para moldar opiniões e suscitar respeito, medo e terror.

Alguns dos cartéis de drogas mais implacáveis são usuários vorazes de várias plataformas digitais. O Cartel de Sinaloa, um dos grupos criminosos mais poderosos do México, tem mais de 34.000 seguidores em sua conta no Twitter. Um feed com o nome do recém-foragido líder do cartel, El Chapo, atingiu quase 400.000 seguidores e recentemente ameaçou online o pré-candidato republicano à Presidência dos EUA, Donald Trump. Mais ao sul, na América Central, uma gangue chamada Mara Salvatrucha 13, ou MS13, possui mais de 40.000 curtidas no Facebook e se comunica com seus membros por todo o continente americano.

O conteúdo desses sites é previsível. A maior parte combina imagens de mulheres, armas e sangue. Eles expõem os símbolos da narco cultura, a trilha sonora online da guerra do narcotráfico no México:carros velozes, mulheres seminuas e fuzis banhados a ouro. Emalguns casos, também incluem narcocorridos com letras como “temos sede de sangue e decapitações”. Desde a fuga de El Chapo, uma dúzia de tais sites surgiram para celebrar suas façanhas. Embora banidos pelo governo mexicano, esses memes costumam servir um propósito estratégico: o Centro de Estudos do Exército e da Força Aérea da Secretaria de Defesa do México rastreia seus conteúdos para obter inteligência militar.

Em toda a América Latina, o espaço cibernético vem sendo tomado por cartéis, gangues e outros grupos de crime organizado, que usam tal espaço para ameaçar seus rivais, vender produtos, enviar instruções e recrutar novos membros. Nada disso é particularmente novo. Desde 2005, agências da lei começaram a detectar o compartilhamento online das chamadas narcomensajes. Geralmente são textos curtos deixados nos corpos das vítimas para explicar o motivo de seu assassinato: “isso é o que acontece quando você trabalha com um cartel rival”.

Não é surpreendente que a expansão das mensagens de texto tenha sido acompanhada por uma explosão dos chamados narcovídeos. Alguns desse clipes curtos são filmes snuff; outros, simplesmente propaganda. Uma análise de alguns desses vídeos online mostra que eles variam em conteúdo e estilo: alguns incluem torturas e execuções, discursos de líderes dos cartéis, ou até mesmo eventuais gestos de boa vontade. Alguns grupos ligados ao tráfico de drogas, por exemplo, gostam de filmar seus membros prestando assistência humanitária a vítimas de desastres naturais.

Embora os cartéis e gangues existam há muitas gerações, o espaço cibernético tem permitido que eles expandam enormemente seu poder, prestígio e lucros. Eles levaram a violência ao ambiente virtual, com foco em blogueiros, espiões e concorrentes. Considerando o volume de usuários de Facebook no Brasil, Colômbia, El Salvador e México, agora é possível extorquir quantidades enormes de pessoas com apenas um clique. Também houve um aumento de sequestros de programadores e engenheiros de software à medida que esses grupos de crime organizado reforçam suas capacidades digitais.

A explosão de atividades online dos cartéis e gangues não resulta apenas em mais homicídios. Ela também vem minando as liberdades básicas dos cidadãos, como, por exemplo, a independência da imprensa. Tais atividades têm gerado intimidação ou autocensura nas mídias de notícias no México, e também nos países do triângulo norte da América Central e partes da América do Sul. Mais de 32 jornalistas foram mortos no México durante a última década, e muitos jornalistas cidadãos foram assassinados em público.

De um ponto de vista mais positivo, percebe-se que os cidadãos também estão reagindo online e offline. Os ativistas digitais vêm se auto-organizando em comunidades virtuais e buscando a internet como fonte de informações confiáveis. Eles usam suas redes para juntar e disseminar informações com o intuito de se protegerem. A explosão da narconet levou a uma explosão das atividades online, inclusive os narcotweets. Pesquisas sugerem que cerca de 1,5% de todos os mexicanos já tuitou sobre a guerra do narcotráfico – o que representa cerca de 5% de toda a população online daquele país.

Da mesma maneira, grupos de autodefesa também vêm se levantando contra os cartéis e seus associados. A milícia Valor por Michoacan, por exemplo, focou sua atenção no cartel Caballeros Templarios. A Valor possuía mais de 184.000 seguidores no Facebook antes de ter sua conta desativada (embora ainda mantenha uma conta ativa de Twitter).

Portanto, o que tudo isso nos mostra? Em primeiro lugar, esses dados indicam como as mídias sociais vêm sendo absorvidas nos campos de batalha do século XXI. Eles também revelam como os cidadãos estão reagindo e utilizando as mídias sociais para melhorarem seu processos decisórios, se organizarem e até mesmo lutarem contra os que tentam prejudicá-los.

Os jornalistas cidadãos e os coletivos digitais têm muito menos poder de fogo, tanto no ambiente online quanto no mundo real. O setor de tecnologia pode e deve criar maneiras de empoderar os que não têm voz, para que esses possam falar e se comunicar sem medo ou intimidações. Isso significa criar espaços seguros para compartilhar anonimamente informações verificadas. Fazer isso corretamente é um desafio técnico que, por sua vez, gera novos desafios relacionados à liberdade e aos direitos de expressão, bem como à segurança pessoal no ecossistema digital global.

Robert Muggah, El País

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