‘Isolamento’ e demora para entender riscos contribuíram para crise em UPPs, diz porta-voz
Abril, 2015
Da BBC Brasil no Rio de Janeiro
Em meio a uma de suas fases mais turbulentas, as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) do Rio de Janeiro, criadas em 2008, enfrentam um momento crucial. Com três mortes de moradores nos últimos 15 dias – entre elas a do menino Eduardo de Jesus Ferreira, de dez anos, atingido por um disparo em frente de casa ─ e o anúncio de uma “reocupação” do Complexo do Alemão, o programa de pacificação enfrenta o desafio de se reinventar e se reorganizar para seguir adiante.
Para analistas, a instabilidade se agravou com a intensificação de tiroteios e confrontos no Alemão, além de problemas na Rocinha e dos desafios do processo de pacificação do Complexo da Maré, ainda ocupado pelas Forças Armadas. Eles acreditam que além de investimentos e melhorias, a “nova UPP” deve incluir uma revisão total da estratégia de pacificação.
Robert Muggah, especialista em violência urbana do Instituto Igarapé, acredita que a situação no Alemão representa um acúmulo de todos os problemas que assolam o programa.
“Eles parecem ter perdido o controle sobre a narrativa da pacificação. É preciso compreender que cada comunidade é diferente, que precisa haver mais investimento em treinamento, e que o Rio necessita de uma estratégia integrada de segurança pública”, indica.
A avaliação é partilhada pela promotora Gláucia Santana, do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MP-RJ), que durante dois anos ouviu quase mil policiais militares, muitos de UPPs, queixando-se de falta de treinamento, armamentos com defeito, bases precárias e sobrecarga de trabalho.
“Há falta de investimento, e o policial está sobrecarregado, pressionado, muitas vezes trabalhando em condições insalubres. É preciso começar a reverter este quadro”, diz.
Para saber como o comando das UPPs pretende lidar com esses desafios, a BBC Brasil conversou com o major Marcelo Corbage, porta-voz do programa e encarregado da interação com as comunidades.
Parte da nova cúpula que assumiu o controle do programa em janeiro deste ano, oriunda do Bope, Corbage afirma que o futuro das UPPs depende de um maior comprometimento de diferentes pastas do governo estadual, para que melhorias sociais cheguem às comunidades, além dos investimentos em novas bases e recapacitação dos policiais.
Para ele, um dos nortes deste trabalho será identificar e corrigir erros do passado.
“Um (dos erros) certamente foi um afastamento da UPP das demais forças de segurança. Incluindo aí forças especiais, agências de inteligência, batalhões de área, Polícia Civil. Além disso houve uma demora excessiva de se entender que algumas bases estavam em situações de elevadíssimo risco, o que também acabou propiciando esse momento ruim”, diz.
Veja os principais trechos da entrevista com Corbage:
BBC Brasil – Em agosto do ano passado, a BBC Brasil conversou com o então comandante das UPPs, coronel Frederico Caldas, que rejeitou classificar a crescente tensão como uma “crise”. O que mudou de lá para cá? Qual é o momento vivido hoje?
Corbage – Seria hipocrisia ou ignorância dizer que não estamos passando por um momento difícil. Contudo, estamos tomando ações para reverter esse cenário num curto espaço de tempo. A diferença é que hoje falamos e fazemos, e é importante perceber que o processo de reorganização operacional e administrativa das UPPs começou na UPP São João, antes desse momento agora no Alemão. Começamos em fevereiro com a requalificação de todo o efetivo desta unidade, inclusive já com o novo formato estipulado pelo decreto que intitula o governador como responsável direto do projeto de polícia de proximidade, passando a responsabilidade da Secretaria de Segurança Pública diretamente para o Estado. Fizemos um diagnóstico intenso no São João, que nos ajudou a criar uma consciência situacional e traçar medidas emergenciais e também de médio e longo prazo.
BBC Brasil- Quais são essas medidas emergenciais?
Corbage – Primeiro era a questão da recapacitação do efetivo, e depois a inserção das tropas especiais (Bope e Batalhão de Choque) no terreno, para estabilizar a área e trazer tranquilidade para aquela população e para os policiais. Em algumas UPPs o processo não está tão consolidado quanto em outras, e cada uma tem características próprias. Por isso a gente não pode ter uma fórmula pronta para todas. Não podemos repetir os erros passados, de agir ou pensar de uma forma inflexível em todas as unidades. O diálogo também é fundamental, com maior alinhamento de expectativas, equilibrando o que eles esperam de nós e o que nós esperamos deles.
BBC Brasil – Moradores e policiais apontam a falta de treinamento como um grave problema nas UPPs. O ex-comandante do Bope, Paulo Storani, já chegou a dizer que jovens policiais são enviados a comunidades como se estivessem indo para um “holocausto”. O que se pode fazer para melhorar este cenário?
Corbage – O que vai fazer com que o nosso trabalho melhore ao longo do tempo é justamente investir em treinamento. Não há resposta mágica, é trabalho. Todo policial, além dos cursos básicos de formação, tem que ter um treinamento continuado. Os policiais de UPPs têm que ser vistos como tropas especiais. Eles trabalham numa situação especial, com ferramentas especiais.
BBC Brasil – O governador anunciou recentemente que 1.100 novos policiais reforçarão as UPPs nos próximos meses, e deixou claro que serão recém-formados. Eles irão para o Alemão diretamente? Não estamos reproduzindo este círculo vicioso de falta de efetivo e chegada de reforços jovens e sem treinamento?
Corbage – Alguns irão diretamente para o Alemão. Contudo, toda a tropa do Alemão vai passar por um trabalho de qualificação. A gente vai ter a preocupação de que esses policiais passem por esse período antes de entrarem no Complexo, inclusive com palestras explicando o que é de fato a comunidade, e apresentando um diagnóstico social para eles entenderem quais são as características do Alemão em termos de relevo, geografia, geografia política, e também o histórico criminal do local.
BBC Brasil – De quanto tempo será este treinamento?
Corbage – É um treinamento de oito dias, que a gente chama de Módulo de Proteção Policial, no qual os policiais têm treinamento de instrução tática individual, armamento, abordagem a pessoas e veículos, e técnicas de tomada de decisão com acompanhamento psicológico para que ele saiba se posicionar em situações de crise. E temos um segundo módulo, de polícia cidadã, que é de mediação de conflito e questões de comunicação social.
BBC Brasil – O senhor acha que oito dias são suficientes?
Corbage – O que nós temos hoje na nova proposta é que esse treinamento não seja estanque. Esse é um dos problemas que as tropas sinalizavam. Tem que haver um treinamento de sala de aula, mas também um treinamento contínuo. Com caderneta de tiro, de avaliação do desempenho desse policial ao longo do ano, e até mesmo ensino à distância. O policial não pode pensar isoladamente, de maneira nenhuma, ou não tomar uma decisão por falta de conhecimento técnico. Isso não pode acontecer.
BBC Brasil -Alguns analistas veem a “reocupação” do Alemão como um fracasso da UPP, embora saúdem a reorganização do programa. O senhor concorda?
Corbage – Eu não vejo como uma reocupação. Não existe isso, porque em nenhum momento a gente saiu de lá. O governador não é técnico. Eu sou técnico. Eu estou num lugar estratégico, e não posso falar em reocupação. Não é isso que está, de fato, acontecendo. O fato de nós estarmos substituindo alguns pontos vulneráveis por pontos fortes já denota que nós não estamos saindo do território, e sim que estamos nos reorganizando para avançarmos. É claro que em alguns pontos o projeto não avançou. Mas aí também cabe um mea culpa de outras secretarias do governo estadual, que em determinado momento não se viram parte do projeto.
BBC Brasil – O que o governador quis dizer então, com “reocupação”?
Corbage – Além do nosso dever de casa, que é recapacitar e reorganizar nossas tropas no terreno, com a substituição dos contêineres, e de uma maneira tática operacional estarmos melhor distribuídos. Também estamos falando da entrada das tropas especiais (Bope e Batalhão de Choque). Eles não têm data para sair, mas em algum momento sairão. Precisamos trazer tranquilidade e paz social, e garantir que a vida volte ao normal no Alemão, nos aspectos econômico, social e cultural. Ali era o quartel-general do Comando Vermelho, e eles não querem que a UPP esteja lá.
BBC Brasil – Sobre os três últimos casos de vítimas de disparos, dois no Alemão e um na Maré, sendo duas mulheres mortas dentro de casa, além do menino Eduardo, o que há de atualização?
Corbage – Nós estamos tentando entender melhor o que aconteceu. Houve uma ordem direta do atual comandante-geral da corporação para apurar que aconteceu. Não com o intuito de responsabilizar alguém, mas para “abrir a caixa preta” e obter lições daquilo, erros que culminaram com essa tragédia. Houve alguma imprudência, imperícia, negligência? O erro é uma questão humana, mas houve alguma violação de conduta, ou seja, um erro proposital? Descumpriu-se alguma normal operacional? É tudo isso que a gente precisa apurar. Nesse momento não podemos falar. Como é uma questão de homicídio, se for comprovado, de fato, que houve envolvimento do policial, as medidas legais serão tomadas.
BBC Brasil – O senhor mencionou erros do passado. Quais são alguns dos principais equívocos que se quer agora reparar?
Corbage – Um certamente foi um afastamento da UPP das demais forças de segurança. Incluindo aí forças especiais, agências de inteligência, batalhões de área, Polícia Civil. Naquele momento houve problemas ou um entendimento que gerou isso, que resultou nisso. E quando você trabalha isolado você trabalha com informações compartimentadas. As tropas trabalhavam próximo a um batalhão ou uma delegacia mas se entendia que não podiam contar com ajuda porque não havia conectividade.
Houve uma demora excessiva de se entender que algumas bases estavam em situações de elevadíssimo risco, mas aí também há entraves burocráticos, de custos. Há que se lembrar que a Polícia Militar é um ente que não tem autonomia política nem financeira, então é algo muito complicado. Essa demora excessiva também acabou propiciando esse momento ruim. Está demorando? Então vamos botar ponto fortificado. Está demorando? Então vamos trazer cabines blindadas.
BBC Brasil – O que se pode esperar da “nova UPP”?
Corbage – Essa “nova UPP” é uma UPP humanizada, dentro de um momento difícil que vive o Rio de Janeiro, mas ciente de uma responsabilidade muito grande, e nós queremos atender a todas as expectativas, sejam das próprias tropas, que são muitas, e da população do Rio de Janeiro. As metas são a paz e a confiança da população. Há um desafio de credibilidade interna e externa. Os policiais precisam acreditar no que estão fazendo, porque nós acreditamos neles. A UPP é feita de policiais e não de contêineres. Mas a paz só vai ser alcançada com o apoio da população. Eles são os protagonistas, não somos nós.