‘O foco da repressão ao tráfico deveria ser no crime violento’, diz especialista em política de drogas

 

Fevereiro, 2015

 

Para Ilona Szabó, coordenadora da Comissão Global de Política sobre Drogas e fundadora do Igarapé, regulamentar cultivo seria um choque para crime organizado

POR DANDARA TINOCO

RIO – Regulamentar o cultivo de maconha para o uso pessoal “seria um baque para o poder do crime organizado”. A afirmação é de Ilona Szabó, coordenadora da Comissão Global de Política sobre Drogas e Democracia, onde trabalha ao lado de autoridades como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Também fundadora do Igarapé, instituto dedicado às agendas de segurança e desenvolvimento, a cientista política comenta casos recentes de prisão de cultivadores classificados como traficantes, caso de André da Cruz Teixeira Leite, o Cert, um dos fundadores da banda de rap Cone Crew Diretoria, preso no fim de semana. Para ela, o foco da repressão ao tráfico deveriam ser crimes violentos.

A prisão de cultivadores de maconha está se tornando mais frequente? Por quê?

Houve uma explosão no debate sobre maconha medicinal e sobre a rede de cultivadores. De um lado, isso gerou comoção, e o tema está andando na agenda política. De outro, está havendo mais resistência dos setores que são contra, mais conservadores. A Lei de Drogas é falha porque, em muitos casos, a única testemunha de acusação é o policial. Muitas vezes, o delegado acata o seu relato e classifica as pessoas como traficantes. Estamos vendo uma certa arbitrariedade na maneira como o cultivo está sendo classificado. No caso da prisão do músico, eram pouquíssimas plantas e nenhum outro indício. A classificação como traficante está errada.

Essas prisões estão relacionadas à estigmatização dos usuários?

Sim. Parte da polícia, da defensoria, da promotoria, dos juízes e desembargadores estão vendo que o que estamos fazendo é um absurdo e que temos uma lei que tem de ser revista. Por outro lado, quem resiste a isso está usando a falta de clareza da lei e o arbítrio que a lei dá para o policial para continuar fazendo o que sabemos que não funciona, e que causa um problema social.

Por que pessoas optam por plantar maconha em casa?

Sabemos que muitas pessoas que usam maconha regularmente têm consciência de que não gostariam de contribuir para a cadeia organizada do tráfico de drogas. Enquanto política pública, seria muito menos danoso para a sociedade regulamentar o cultivo da maconha para uso pessoal. Sabemos que isso seria um baque para o poder do crime organizado. Há muitos países onde isso já acontece.

Qual seria uma boa referência internacional nesse sentido?

Vários países, mesmo com a droga sendo ilegal, permitem o cultivo e as cooperativas de usuários. É o caso de Espanha, Bélgica e Uruguai. Onde o uso é regulado, inclusive, não há restrição de quantidade para plantio, basta que ele seja para consumo pessoal.

Há um perfil comum entre os que plantam maconha em casa?

Não tenho uma pesquisa, mas, do ponto de vista qualitativo, posso falar que, além dos usuários recreativos que não querem contribuir com o tráfico, há muita gente plantando por causa de doenças crônicas, como câncer ou depressão, insônia, ansiedade. Há também pais de crianças que têm crises epilépticas que começaram a fazer experimentos.

No que implica o encarceramento de usuários de drogas que não representam ameaça para a sociedade?

Há um custo social absurdo. Quando uma pessoa é fichada criminalmente ela está sendo estigmatizada, mesmo que seja inocentada. A Lei de Drogas normalmente não permite que o acusado espere o julgamento em liberdade, e são meses preso até lá. Quanto mais pobre você é, mais tempo fica. Há também um alto custo financeiro. Estatísticas provam que, se a pessoa tem envolvimento com a venda de droga ou mesmo tem envolvimento, mas não é perigosa, o custo de prendê-la é absurdo. Temos de parar de gastar dinheiro com esses presos de baixo potencial ofensivo.

Qual deve ser a resposta penal para usuários de drogas e para vendedores que não oferecem perigo?

Sou contra que o usuário tenha qualquer resposta penal. O limite do uso? Primeiro, a dependência, que precisa do sistema de saúde e, segundo, o usuário que começa a causar transtorno pra sociedade. Mas aí ele tem de ser preso por esses transtornos. Na questão do tráfico, tem de haver escala. O pequeno vendedor, que financia seu hábito e não está com com armas, faz tão pouco parte da cadeia do crime que deve receber penas alternativas de ressocialização, como serviços comunitários e educação. Temos de abrir portas para ele sair desse circuito.

No que implica o fato de, em alguns casos, os policiais serem as principais testemunhas nesses casos?

Isso é muito ruim. Até policiais reclamam, porque acabam sendo os juízes. No Brasil, prendemos em flagrante, sem que haja investigação, e crimes graves não são elucidados. Prendemos a presa fácil que comete um crime pequeno. É muito ruim que a sociedade ache que esse é o caminho. E também o sinal que estamos dando para os criminosos mais graves, que ficam impunes. Todo o foco da repressão ao tráfico deveria ser no crime violento.

Estabelecer uma quantidade que diferencie usuários e tráfico ajuda?

Não é a panaceia. Mas, quando vemos que não existem critérios objetivos e que os policiais podem cometer arbitrariedade, acho que ter esse critério ajudaria a diminuir as arbitrariedades, se outros critérios fossem respeitados. Por outro lado, temos de tomar muito cuidado com a quantidade regulamentada. No México, por exemplo, colocaram uma quantidade muito pequena, e isso acabou criminalizando mais ainda os usuários.

Como defende que seja a descriminalização de drogas no Brasil?

Temos uma agenda com passos que, sem grandes mudanças, causariam grandes melhorias. O primeiro seria tirar o usuário da esfera criminal e criar uma política pública de saúde baseada no conceito de redução de danos. Defendemos também a questão do autocultivo e da maconha medicinal. Outro ponto forte na nossa agenda é a questão da juventude. A política atual causa o genocídio da juventude pobre e negra pela sua criminalização. Precisamos dar oportunidade para jovens que ainda não entraram e que já entraram. Outro ponto é que se consiga recurso e foco para pesquisas sobre o tema. De todos os passos, só a retirada do uso da esfera criminal depende de lei. A partir dessas mudanças, conseguiremos pensar num modelo de regulação para o Brasil, o que significa, sim, que algumas drogas podem passar a ser legais, principalmente a maconha.

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