Drogas: as histórias que não te contaram
27 de Março
Ainda que destacada pelas manchetes dos jornais no país e no mundo, a crise carcerária brasileira segue inabalada. Logo após os massacres do início do ano, o governo federal adotou medidas paliativas, mas o potencial para mais episódios de violência permanece, assim como as causas de fundo, incluindo o encarceramento em massa de pessoas acusadas de delitos não-violentos associados a drogas. Apesar de apelos corajosos por uma reforma na política de drogas, partindo até de um ministro do Supremo Tribunal Federal, a implacável guerra contra as drogas segue piorando o cenário ao redor.
Em vez de repensar o que se tem feito para lidar com o assunto, muitos políticos brasileiros continuam propondo soluções equivocadas. Eles preferem recorrer a medidas ultrapassadas e contraproducentes na defesa de suas causas. Algumas autoridades afirmam, equivocadamente, que a descriminalização do uso de drogas, de alguma forma, facilitaria o acesso às drogas e aumentaria seu uso. Esse tipo de preconceito custa a ser desmistificado.
Tais crenças não são apenas ultrapassadas, mas extremamente perigosas. Há, na verdade, evidências indiscutíveis de que a guerra às drogas fracassou. Dezenas de estudos científicos e relatórios produzidos pela Comissão Global de Políticas sobre Drogas mostram que a descriminalização do uso substâncias, a adoção de programas de redução de danos, e a regulação responsável das drogas hoje ilícitas conseguiram conter o avanço do consumo e do abuso de psicotrópicos onde bem implementadas. O problema maior de todo esse debate nasce da resistência de certos políticos em aceitar que é a guerra às drogas – e não as drogas em si – que estão provocando tanto sofrimento e tantas mortes.
Apesar dos bilhões de dólares gastos nessa batalha, a produção de drogas não encolheu, como reconheceu mais uma vez este mês as Nações Unidas. Em todo mundo, surgem líderes eleitos que apontam a falácia dessa guerra que já dura 55 anos e continua a insuflar a violência. O único caminho para o Brasil e outros países se entenderem com a questão das drogas é mudar o foco das substâncias para as pessoas, o que só acontecerá se começarmos a contar e a ouvir a história dessas vidas impactadas pela política de drogas, uma cadeia de eventos cruéis, com sentenças mal distribuídas alimentando nossa injustiça social.
Meu novo livro – Drogas: as histórias que não te contaram (Zahar) que escrevi em colaboração com a jornalista Isabel Clemente, narra a vida de cinco personagens cujas vidas são viradas do avesso pela política de drogas. Mostra também como pessoas como eu e você são afetadas pela cadeia das drogas, que vai da produção ao consumo. Pegue o caso de Daniel, filho de plantadores de coca na Colômbia, recrutado pelas Farc e obrigado a entrar na venda de cocaína. Considere ainda a história de Irina, mãe de duas crianças, presa por transportar drogas para tentar contratar um advogado e tirar o marido da cadeia.
São poucas as pessoas que se envolvem com drogas de forma voluntária ou proativa. Muitas simplesmente estão diante de circunstâncias com as quais não sabem lidar, não enxergam opções entre procurar um emprego e se entregar a um quadro depressivo, não conseguem reverter condições adversas de transtornos mentais, problema para milhões de pessoas no mundo todo. Um traficante como o personagem Mete-Bala, órfão de pai e criado por uma mãe solteira com mais dois irmãos. Entrou no tráfico como informante, recrutado sem condições reais de não aceitar. Fez carreira depois de ser flagrado vendendo drogas, ainda desarmado, até ser morto numa troca de tiros com a polícia. Deixou por sua vez cinco crianças órfãs e três mães adolescente para trás.
Tem também Jaqueline, uma policial que muda sua visão da guerra às drogas depois de se ver em risco em vários episódios dessa luta. E, claro, chegamos a Carlos Eduardo, que começa a usar drogas impelido por sua baixa autoestima e desejo de ser aceito pelo grupo, mas que acaba desenvolvendo uma relação destrutiva de dependência.
O livro oferece apenas um relance sobre os muitos efeitos colaterais da guerra às drogas. Mas também oferece esperança, na medida que existem soluções comprovadas por outros países que estão adotando uma perspectiva mais humana sobre o assunto e que serviriam de inspiração para o Brasil e nossa região.
Primeiro, é essencial que os governos ofereçam alternativas de emprego para as pessoas envolvidas na produção de drogas, seja coca, ópio ou cannabis. Muitos produtores são direta ou indiretamente obrigados a se engajar nessa produção, porque, sem compradores ou escoamento de cultivos alternativos, a droga se torna o único produto viável, como em algumas partes da Colômbia.
Em segundo lugar, autoridades, empresários e movimentos sociais precisam se engajar para gerar oportunidades de trabalho e educação de jovens, evitando assim que eles sejam capturados pelo narcotráfico. Em muitos países da América Latina, não existe opções para a informalidade que não a venda de drogas. E garotos e garotas que se envolvem com esse negócio ilícito merecem uma segunda chance, incluindo crianças-soldados e pequenos traficantes.
Terceiro, a força da lei precisa priorizar os crimes violentos. Muitas vezes, a polícia e promotores são recompensados pelo número de prisões e acusações que realizam. Isso acaba tirando o foco desses profissionais do que realmente importa e é mais urgente, alimentando um sistema judicial ineficiente, sobrecarregado de processos criminais, e um sistema prisional superlotado.
Em quarto lugar, o sistema de justiça criminal precisa se ajustar para decretar penas proporcionais ao crime. Mesmo em países que descriminalizaram as drogas, alguns juízes pegam pesado com penas para infratores não violentos ou de primeira viagem que pioram as crises carcerárias enquanto arruina a vida de toda uma geração. Isso gera consequências traumáticas na vida de quem fica do lado de dentro e também do lado de for a das prisões, especialmente das crianças separadas de suas mães.
Finalmente, a sociedade precisa adotar uma série de medidas para lidar com a dependência. Como ponto de partida, consumidores de drogas precisam sair da alçada da Justiça criminal. O desejável é a adoção de uma política de prevenção, redução de danos e tratamento adequado a cada caso. Há inúmeros exemplos, em especial na Europa de estratégias bem-sucedidas para reduzir dependência e abuso, reabilitando usuários para que eles voltem a ter uma vida produtiva inseridos no mercado de trabalho. Informação, amor e cuidado são ingredientes-chave na recuperação.
O Brasil não está sozinho diante do desafio e dos traumas gerados pela violência em prisões e pela geurra às drogas. A boa notícia é que o mundo já assiste casos inspiradores de políticas que estão sendo redesenhadas para lidar com as drogas de forma que as pessoas sejam o centro das preocupações, e não as substâncias. A hora de reformar a política de drogas brasileira é agora.